O Etanol na Mobilidade Sustentável do Futuro

Brasil precisa seguir o mundo que aposta em carros elétricos como alternativa ao petróleo?

O setor sucroenergético se confunde com o descobrimento do Brasil. Oficialmente, foi Martim Afonso de Sousa que, em 1532, trouxe a primeira muda de cana ao Brasil e iniciou seu cultivo na Capitania de São Vicente. Lá, ele próprio construiu o primeiro engenho de açúcar. Mas foi no Nordeste, principalmente nas Capitanias de Pernambuco e da Bahia, que os engenhos de açúcar se multiplicaram. O açúcar era a principal fonte de energia para o organismo. Os médicos forneciam açúcar em grãos para a recuperação ou alívio dos moribundos.

Mais de 400 anos depois, na década de 70, o mundo passava pela crise do petróleo. A estimativa era que em 70 anos o produto estaria esgotado. Tal descoberta fez o preço do produto se alterar, fazendo-o triplicar no final de 1977. A crise e a instabilidade motivaram o lançamento do Programa Nacional do Álcool (Pro-álcool), uma iniciativa do governo brasileiro para intensificar a produção de álcool combustível (etanol) para substituir a gasolina que, por causa da crise, passou a ter um grande peso nas importações do país. Desta forma, as usinas de cana iniciaram a produção de açúcar e etanol, ou seja, alimento e energia.

Neste momento, as usinas de açúcar e etanol já queimavam bagaço nas caldeiras para serem autossuficientes na produção de energia. Em 1987, uma usina do estado de São Paulo fez a primeira cogeração, ou seja, além de produzir sua própria energia para o processo operacional, ainda destinou o excedente para a rede pública. Esse pioneirismo se transformou em modelo para muitas usinas no Brasil em diversas regiões.

Hoje, a bioeletricidade gerada pela cana-de-açúcar é a 4ª fonte mais importante da matriz energética brasileira, complementando a geração das hidrelétricas nos momentos de poucas chuvas aumentando a segurança energética do país e reduzindo perdas no transporte pelas usinas, por terem distribuição próxima de centros consumidores. Em 2021, o setor produziu 20,2 mil GWH usando apenas 15% desta energia para consumo próprio.

O etanol voltou a ter uma demanda muito alta em 2003 com o carro flex. Neste período, o Brasil já havia saído de uma produção de 68 milhões (1977) para 306 milhões de toneladas de cana (2003) se consolidando como o maior produtor de etanol de cana do mundo. Sendo o Brasil o terceiro maior consumidor de energia para transportes, atrás apenas dos Estados Unidos e China, nosso país tem grande protagonismo nesta área. O etanol está tão consolidado no Brasil que, em 2020, já substituiu 48% de sua gasolina automotiva através da mistura de 27% de etanol anidro na gasolina, do uso do etanol hidratado na frota flex e mistura de 13% de biodiesel ao diesel fóssil. Com esta substituição, entre março de 2003 e maio de 2020, o consumo de etanol (anidro e hidratado) evitou a emissão de mais de 515 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera, segundo cálculos da ÚNICA (União da Indústria de Cana de Açúcar e Bioenergia), baseados em dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Esse volume é equivalente às emissões anuais somadas de Argentina, Venezuela, Chile, Colômbia, Uruguai e Paraguai. Para ilustrar esse benefício, seria como plantar 4 bilhões de árvores pelos próximos 20 anos.

Interessante analisar que a produção de etanol foi implantada no Brasil em 1975 exclusivamente para reduzir os impactos de uma crise econômica do país, porém ninguém imaginava que este combustível seria, nos dias atuais, mais eficiente na promoção da eficiência energética com menor impacto ambiental na mobilidade, mesmo se comparando aos carros elétricos. Por isso, mesmo com o foco das grandes montadoras pela eletrificação, é possível dizer que o etanol tem um papel fundamental para o futuro da mobilidade.

Para entender melhor como isso é possível, precisamos avaliar três questões importantes que afetam diretamente no quesito eficiência energética e impacto ambiental.

1. Acessibilidade: para ser viável é necessário que a maior parte dos consumidores tenha condições de adquirir;

2. Infraestrutura de distribuição: investimento necessário para estruturar o acesso de todos os veículos ao etanol;

3. Sustentabilidade: avaliação do ciclo de vida, ou seja, a determinação da combinação mais eficiente de fonte de energia e tecnologia automotiva.

O terceiro índice precisa ser muito bem explicado para que não haja dúvidas em relação a emissão de gases do efeito estufa pelos automóveis, pois precisamos avaliar como a política pública vai medir o impacto energético e ambiental. Se a política pública estiver interessada em medir apenas emissões de escapamento, o veículo a bateria pode ser considerado uma solução, mesmo utilizando energia elétrica de fonte fóssil. Esse é o conceito “tanque à roda”, reconhecidamente parcial e incompleto.

Se a política avaliar emissões relacionadas desde a geração da energia (qual é a fonte de energia da bateria do meu carro? Hídrica, carvão, eólica, nuclear, etc) até o seu uso final, teremos uma avaliação mais completa, denominada “poço à roda”. Se a política avaliar emissões integrais incluindo aquelas relacionadas à construção e descarte dos veículos e dos sistemas de geração de energia, seguirá o conceito “berço ao túmulo”.

A Europa e os Estados Unidos já possuem estratégias para controlar emissões gases do efeito estufa (GEE), porém sem se preocuparem com a origem da energia. No gráfico abaixo fica evidente que se compararmos do poço a roda, veículos convencionais, movidos a gasolina ou diesel, emitem muito mais CO2 equivalente/km do que usando o mix médio de eletricidade fóssil renovável local. A diferença é de 122 para 92 gCO2eq./km, o que já é um avanço, apesar do custo elevado do veículo e da nova infraestrutura que precisa ser criada para recarregar baterias.

No Brasil, os carros da frota flex vendidos desde 2003 já emitem 58 gCO2eq./km e os carros híbridos flex a etanol vendidos desde 2019 emitem 29 gCO2eq./km, ou seja, muito mais baixos que o elétrico europeu ou americano, além de contarem com uma infraestrutura pronta, pois nosso produto é comercializado em uma rede com mais de 41,7 mil postos de revendas distribuídos em todo território nacional.

Desta forma, podemos concluir que nos dias atuais o veículo híbrido flex é o mais limpo do mundo. Até o carro a gasolina no Brasil gera menos CO2e/km do que o carro elétrico europeu, apenas 87 contra 92 CO2e/km respectivamente, pois a gasolina brasileira possui 27,5% de etanol. Esta combinação indica que o etanol dá a gasolina longevidade e sustentabilidade.

Fonte: Mahle – Ricardo Abreu

Nos próximos anos, o avanço tecnológico tornará os veículos mais eficientes em todos os sentidos, principalmente na redução de geração de CO2 para atmosfera. Nos países que possuem etanol em sua frota, várias empresas estão desenvolvendo um carro elétrico a etanol com célula a combustível. Esta tecnologia se baseia em um veículo 100% elétrico, mas que a bateria seja recarregada através do etanol. Ou seja, para carregar a bateria não será necessário alterar a rotina, bastando parar em um posto e abastecer seu carro com etanol, substituindo a eletricidade da rede pública e dispensando a recarga do tipo plug-in por meio de tomadas das baterias de lítio. O método é relativamente simples: o etanol vai da célula de combustível para um reformador, junto com água. Lá, os elementos passam por reações químicas que geram hidrogênio, água, CO (monóxido de carbono) e CO² (dióxido de carbono). O hidrogênio, então, é convertido em eletricidade, enquanto os demais elementos são expelidos.

Até 2024, o motor de combustão flex a etanol deve melhorar a eficiência. Com a emissão caindo para 38gCO2e/km, o híbrido vai para 27gCO2e/km. Uma vez implantada, a célula a combustível também manterá o índice em 27gCO2e/km. O elétrico europeu irá para 74gCO2e/km e a combinação de etanol gasolina no Brasil dentro do modelo do Programa Nacional de Biocombustíveis (Renovabio) de 64 gCO2e/km.

Fonte: Mahle – Ricardo Abreu

Este comparativo não deve basear a decisão mundial entre usar veículo movido a etanol ou energia elétrica, afinal as tecnologias serão regionalizadas e todas vão impactar positivamente na redução da emissão de CO2. Até porque não são todos países que conseguem produzir biocombustíveis de maneira sustentável, como o Brasil.

À medida que conceitos de sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa (ESG) avançam no mundo inteiro, quando o assunto é energia para transporte, a busca por eficiência energética e menores emissões locais e globais é incessante. Por isso, é de suma importância que políticas públicas nas áreas de energia e meio ambiente sejam coerentes e convergentes. É preciso integrar os diferentes programas de governos nas áreas de energia e meio ambiente como é o caso do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), o Requisitos Obrigatórios para Comercialização e Importação de Veículos Novos (Rota 20/30) e o Renovabio.

O Brasil possui um modelo de mobilidade que se aplica a diversos países, integrando cadeias produtivas de diferentes setores para a descarbonificação veicular. O Renovabio, por exemplo, recompensa as usinas que desenvolvem tecnologias e implementam inovações na direção da maior competitividade na produção de biocombustíveis/bioenergia de forma sustentável. Usinas que estão em áreas desmatadas ou que não possuem o Cadastro Ambiental Rural (CAR), sob a égide do Código Florestal Brasileiro, não conseguem se enquadrar no programa. 

É importante compreender que o biocombustível é energia solar capturada, armazenada e distribuída de forma eficiente, econômica e segura. Porém, de forma crescente, estamos discutindo um mundo baseado em hidrogênio. Biocombustível também é hidrogênio capturado, armazenado e distribuído de forma eficiente, econômica e segura como foi explicado com a tecnologia do carro a célula combustível. Este tipo de política já foi recomendado pelo comitê climático dos EUA para ser adotado neste ano. Isso tudo alinhado com declaração de visão de 19 nações que representam mais de 50% da população mundial e que teve adesão da agência internacional de energia.

Esta declaração diz que para que se cumpra o cenário de limitar o aquecimento global a 2°C é mandatório que até 2030 a proporção de bioenergia para aviões, navios e veículos dobre e a proporção de biocombustíveis de baixo carbono triplique. Isso significa que, até 2030, a produção de biocombustíveis precisa passar de 130 bilhões para 500 bilhões de litros e, posteriormente, para 1,12 trilhão de litros até 2050 para que se atinja de maneira eficaz e de menor custo os objetivos do Acordo de Paris. Isso é possível com a implantação de novas tecnologias, que permitem diversificar ainda mais a produção de energia através de resíduos da própria produção de etanol.

Isso já acontece hoje com a utilização de resíduos, como a torta de filtro e vinhaça, que são matérias-primas para a produção de biogás e biometano. Também será possível produzir biodiesel a partir da vinhaça.

Adicionalmente, será necessário que a mobilidade veicular seja diversificada com motores de combustão interna, híbridos, eletrificação com biocombustíveis com etanol, biometano e a hidrogênio. Não aquele hidrogênio que conhecemos capturado e armazenado em tanques de alta pressão (500 a 900bar), caros e arriscados de titânio, mas aquele representado por combustíveis líquidos de alta densidade energética e baixa pegada de carbono, produzido de forma eficiente e sustentável. Biocombustível como etanol, biogás e biometano.

Portanto, ao parar no posto para abastecer, pense de forma ampla na cadeia de benefícios do etanol. A substituição da gasolina reduziu a pegada de carbono e recolocou a qualidade do ar de São Paulo, a quarta cidade mais populosa do mundo, dentro dos padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Leve em conta também os empregos que são gerados pela agricultura, que respeita o meio ambiente e a indústria, que mantêm os profissionais no campo com infraestrutura e tecnologia. Com potencial de reduzir até 90% das emissões de CO2, quando comparado à gasolina, o etanol é o combustível do presente e do futuro para a nova era da mobilidade sustentável. O etanol veio para ficar e sua diversificação só está começando.

Fontes:

Este artigo foi baseado na palestra do Plínio Nastari e estão disponíveis nos links abaixo. Plinio Nastari é presidente da Datagro e do Instituto Brasileiro de Bioenergia e Bioeconomia (Ibio). No período de nov/16 aago/20 foi o representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

A História da Cana-de-açúcar – Da Antiguidade aos Dias Atuais:

https://www.udop.com.br/noticia/2003/01/01/a-historia-da-cana-de-acucar-da-antiguidade-aos-dias-atuais.html#:~:text=Oficialmente%2C%20foi%20Martim%20Affonso%20de,na%20Capitania%20de%20S%C3%A3o%20Vicente

Bioeletricidade do setor:

https://unica.com.br/setor-sucroenergetico/bioeletricidade/

Adecoagro dá primeiro passo em biometano

https://www.udop.com.br/noticia/2021/09/01/adecoagro-da-primeiro-passo-em-biometano.html

Como a VW criará carros elétricos nacionais movidos a etanol:

https://www.mobiauto.com.br/revista/como-a-vw-criara-carros-eletricos-nacionais-movidos-a-etanol/1757

Nissan inicia projeto para lançar célula de combustível a etanol no Brasil:

https://automotivebusiness.com.br/pt/posts/noticias/nissan-inicia-projeto-para-lancar-celula-de-combustivel-a-etanol-no-brasil/

Plínio Nastari – O etanol na mobilidade sustentável do futuro

https://plantproject.com.br/sessoes/revista/?r=plant_27_ok_issuu

Plínio Nastari – Mobilidade Sustentável usando o etanol:

https://app.strix.one/c/fermentec/post/mobilidade-sustentvel-usando-etanol

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